A proposta deste texto é esclarecer uma questão de ordem prática relativa à concessão de liminares (tutelas de urgência) nas demandas que discutem direitos de propriedade industrial ou visam a impedir atos de concorrência desleal.
O artigo 209 da Lei 9279/96 (Lei de Propriedade Industrial) e o Artigo 300 do Código de Processo Civil autorizam ao Juízo das demandas que discutem propriedade industrial ou concorrência desleal, logo no início do processo, conceder medida liminar para impedir que a parte Ré continue suas atividades empresariais ou deixe de usar marca ou patente, consideradas cópia da Autora da demanda. Antes mesmo do oferecimento de defesa e da realização das provas no processo.
Há casos, e estes não são poucos, em que ao final do processo o Juiz da causa chega à conclusão de que a parte Autora não possui razão e como consequência lógica, revoga essas liminares ou tutelas antecipatórias de Direito, concedidas inicialmente.
É importante chamar atenção para as consequências dessa revogação e o Direito de reparação dos prejuízos impostos à parte Ré, que sofreu os efeitos da decisão liminar revogada.
É indiscutível que a parte Ré, nesses casos, terá sofrido um dano gravíssimo que deve ser reparado. Trata-se de uma presunção da própria lei processual.
Daí surgem as seguintes questões:
a) de quem é a responsabilidade por esses danos, do Poder Judiciário ou da parte Autora do processo que se beneficiou com a decisão liminar revogada?
b) quais danos devem ser reparados?
c) qual a forma de liquidação (apuração) e execução desses danos?
O artigo 302 do Código de Processo Civil de 2015 responde a essas perguntas.
Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:
I – a sentença lhe for desfavorável;
II – obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;
III – ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;
IV – o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.
Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.
Quem deve reparar os danos causados pela decisão liminar efetivada e revogada?
Primeiramente, a responsabilidade para reparar os danos da decisão liminar revogada será sempre da parte que requereu e se beneficiou com a decisão (teoria do risco-proveito, que já existia no CPC de 1973, no artigo 811).
A razão é simples. A decisão judicial é fruto de um requerimento feito pela parte no processo. No caso de uma liminar, a parte Autora elabora o pedido, apresenta as (suas) provas e o Juiz decide de acordo com essas provas e argumentos unilateralmente apresentados.
Vale lembrar que a Lei processual autoriza ao Juiz a concessão de decisão liminar – o que só ocorre se for requerida pela parte interessada, que está ciente de que essa decisão é provisória, ou seja, passível de modificação em razão da evolução do processo e do surgimento de novas provas ou elementos que levem à sua revogação.
Sendo assim, não se pode responsabilizar o Juiz ou o Poder Judiciário pelas consequências do ato revogado.
Neste caso, a Lei estabelece expressamente que a responsabilidade civil pelos danos causados será da parte requerente, uma vez que beneficiada diretamente pela decisão.
Entende-se que a parte que requer uma medida antecipatória de direito assume o risco de produzir um dano à parte oposta, e neste caso responde de forma objetiva, independente de culpa ou dolo.
Quais danos devem ser reparados?
Quanto aos danos que devem ser indenizados, destacamos que o texto legal afirma que a parte deve responder pelos prejuízos causados pela efetivação da tutela de urgência.
Há aqui uma observação. Não basta a tutela de urgência ter sido concedida. Ela precisa ter sido efetivada, isto é, cumprida. E dessa efetivação deve ter resultado em um prejuízo para a parte demandada.
A Lei menciona a expressão “prejuízo”, o que, a rigor, remete o leitor a um dano material quantificado em dinheiro, decorrente do cumprimento da liminar.
Nesse sentido, a parte Ré sempre sofrerá um prejuízo resultante de uma decisão que tenha, por exemplo, proibido a comercialização de um determinado produto sob alegação de violação de patente industrial ou, agravando um pouco mais a situação, que essa mesma decisão tenha determinado o lacre do estabelecimento do Réu. Decisões como essas podem resultar no encerramento das atividades empresariais do demandado.
De imediato, o prejuízo é identificado como o valor correspondente ao que se deixou de vender e todos os demais danos materiais decorrentes dos investimentos realizados para a colocação da mercadoria à venda. Logo, o prejuízo abrangerá os danos materiais decorrentes desse fato e que correspondem aos danos emergentes e lucros cessantes. E por aí vai.
Dano moral está incluído no conceito de “prejuízo”?
A questão que surge é se o dano moral está incluído no conceito de “prejuízo”, para fins de aplicação do Artigo 302 do Código de Processo Civil.
O entendimento adotado pela Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem sido no sentido de que a expressão “prejuízo” adotada pela Lei processual deve ser compreendida no sentido amplo, caso em que também deverá abranger eventual dano moral resultante de decisão liminar cumprida e posteriormente revogada.
Vejamos o trecho do voto da Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial Resp 1.780.410 / SP.
“XI. Com efeito, o art. 811, caput, do CPC/73 prevê que “o requerente do
procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que Ihe causar a execução da medida”.
XII. Veja-se que o dispositivo apenas faz referência a prejuízo, não restringindo o direito à reparação aos danos de ordem patrimonial. Somado a isso, à luz da teoria do diálogo das fontes, não se pode olvidar de que o princípio da reparação integral, consagrado no art. 944 do CC/02, impõe a reparação de todo o dano sofrido pela vítima. Sobre a matéria, é pertinente colacionar os ensinamentos a seguir:
“O fim da responsabilidade civil é a restituição do lesado ao estado em que se encontraria se não tivesse havido o dano. Indenizar significa tornar indene a vítima; reparar todo o dano por ela sofrido. Por isso, mede-se a indenização pela extensão do dano, ou seja, há de corresponder a tudo aquilo que a vítima perdeu, ao que razoavelmente deixou de ganhar e, ainda, ao dano moral” (MENEZES DIREITO, Carlos Alberto; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil. Vol. XIII: da responsabilidade civil, das preferências e privilégios creditórios. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pp. 331-332).
XIII. Destarte, como forma de privilegiar a reparação integral do lesado e, também, como medida de economia processual, evitando-se que a vítima ajuíze uma nova ação, a obrigação de reparar estabelecida no art. 811 do CPC/73 (atual art. 302 do CPC/2015) deve englobar tanto os danos materiais quanto os danos morais comprovadamente sofridos.”
A liquidação dos danos
Por fim, a lei autoriza que a liquidação dos danos resultantes do cumprimento de decisão liminar revogada pode ocorrer no mesmo processo em que a decisão se deu.
A liquidação é um procedimento que se instaura ao final de todo processo que resulta em uma sentença de condenação ao pagamento de alguma quantia em dinheiro. Porém, essa quantia necessita ainda ser determinada através de uma perícia ou da realização de novas provas destinadas a demonstrar os danos ocorridos.
O detalhe curioso é que a decisão que revoga uma liminar, mesmo que seja através de uma sentença, não é necessariamente uma decisão condenatória de pagamento de quantia certa.
Neste caso, o artigo 302 do CPC, cria uma possibilidade de liquidação de decisão que não seja condenatória, para facilitar o Direito do Réu da demanda a ter reparados os prejuízos que sofreu dentro do mesmo processo a que respondeu.
Assim, não há necessidade de a parte Ré lesada iniciar uma nova ação judicial de indenização para obter a reparação dos danos processuais sofridos por ela, através da liminar que resultou revogada.
Trata-se, pois, de uma situação excepcional em que se procede à liquidação de decisão que não possui conteúdo condenatório, conforme esclarece abaixo a Ementa do RECURSO ESPECIAL Nº 1.780.410 – SP (2018/0111670-9), cujo relator é o MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. MARCAS E PATENTES. DECISÃO LIMINAR QUE SUSPENDEU A COMERCIALIZAÇÃO DE MEDICAMENTO. POSTERIOR REVOGAÇÃO. ART. 811 DO CPC/73. PREJUÍZOS QUE PODEM SER LIQUIDADOS NOS PRÓPRIOS AUTOS. REPARAÇÃO INTEGRAL.
RESPONSABILIDADE PROCESSUAL OBJETIVA.
DESNECESSIDADE DE PRONUNCIAMENTO JUDICIAL FIXANDO OBRIGAÇÃO DE REPARAR OS DANOS SOFRIDOS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
- Aplica-se o NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.
- A obrigação de indenizar o dano causado pela execução de tutela antecipada posteriormente revogada é consequência natural da improcedência do pedido, dispensando-se, nessa medida, pronunciamento judicial que a imponha de forma expressa.
- Nos termos da jurisprudência desta Corte, os danos causados a partir da execução de tutela antecipada suscitam responsabilidade processual objetiva e devem ser integralmente reparados (art. 944 do CC/02) após apurados em procedimento de liquidação levado a efeito nos próprios autos.
- Recurso especial provido.”
As hipóteses em que a decisão liminar se torna irreversível
Apesar do mecanismo desenvolvido pelo artigo 302 do CPC, consideramos que os danos resultantes de medidas liminares revogadas ao final do processo, nunca são reparados de forma integral, especialmente em razão do longo tempo que se leva para a finalização do processo.
Assim, mesmo que a parte Autora saia perdedora ao final da demanda, a depender da forma como o seu adversário enfrentou todo o processo, o resultado prático será benéfico a quem obteve as vantagens de uma decisão liminar concedida logo no início.
Um exemplo claro é quando a parte Ré, que sofre os efeitos da liminar, tem o seu estabelecimento lacrado, ou é impedida de vender determinado produto que representa a imensa parte de seu faturamento. É fato que, mesmo que a parte Ré se sagre vencedora ao final do processo, terá ela sucumbido aos efeitos danosos da liminar, encerrando as atividades empresariais, para a felicidade da parte Autora.
A Lei Processual não dá solução para os casos em que a liminar concedida tem um resultado tão danoso que acaba resultando no encerramento das atividades da sociedade empresária que suportou os efeitos da decisão revogada.
Entendemos que este é um caso clássico da irreversibilidade da decisão liminar prevista pelo artigo 300, parágrafo 2o. do CPC, uma vez que nem mesmo a apuração monetária dos danos materiais e morais conseguirá alcançar a finalidade de reparar integralmente os efeitos danosos da decisão.
Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
§ 1 o Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la.
§ 2º A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia.
§ 3º A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão
Nestes casos, ao ter a oportunidade de apreciar o pedido de liminar, prudente será o Juízo sempre oferecer à parte Ré uma oportunidade de defesa prévia ou justificativa e, caso entenda que a liminar deva ser concedida, entendemos ser recomendável que o Juízo pondere de que forma poderá evitar a irreversibilidade da sua decisão, além, da fixação de caução legal ou garantia em favor do Réu.
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